17/02/2022
Especialistas debatem o uso de drogas por motoristas e como ele impacta negativamente na sociedade
Um dos maiores problemas enfrentados pela sociedade atual é o uso indiscriminado de drogas e suas consequências, não só para o usuário, mas, também, para a sua família e os que o cercam. Segundo o Relatório Mundial sobre Drogas 2021, divulgado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), cerca de 275 milhões de pessoas usaram drogas no mundo em 2020, enquanto mais de 36 milhões sofreram transtornos associados ao uso de tais substâncias. Os números, impulsionados pela pandemia do novo coronavírus, preocupam e, no Dia Nacional de Combate às Drogas e ao Alcoolismo, 20 de fevereiro, é necessário promover um debate a respeito da questão e de como ela impacta negativamente na sociedade em geral.
De acordo com a psiquiatra e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas, Analice Gigliotti, o lockdown foi um momento muito difícil e que levou ao aumento do consumo de drogas e álcool. “Eu, por exemplo, ainda estou trabalhando em home office. E, por conta desse novo modelo de comportamento de ficar em casa, muita gente passou a beber mais, até mesmo em horários que antes não bebiam. E, assim, é perceptível o aumento da frequência de uso de álcool e drogas”, observa.
Por outro lado, o Brasil sai na frente quando o assunto é prevenir o uso de drogas psicoativas por meio de uma revolução silenciosa no desestímulo ao uso entorpecentes, que está ocorrendo no trânsito brasileiro de forma crescente devido à adoção do exame toxicológico de larga janela de detecção. Em vigor desde março de 2016, esse exame é exigido por lei de motoristas das categorias C, D e E (condutores de caminhões, ônibus, carretas e vans). “Por meio da queratina proveniente da coleta de cabelos, pelos ou unhas, é possível identificar o uso frequente de drogas nos últimos 90 e até 180 dias. Ou seja, todos os motoristas de transporte de carga e passageiros em veículos grandes devem fazer o exame toxicológico periódico a cada dois anos e seis meses”, afirma Renato Borges Dias, presidente institucional da Associação Brasileira de Toxicologia, a ABTox.
Ele acrescenta que a periodicidade do exame contribui para não confundir o usuário eventual com o consumidor regular, uma vez que foi estabelecido um nível de corte, previsto na regulamentação da Lei 13.103/15, que deu origem à obrigatoriedade do exame, a qual foi sucedida pela 14.071/20, tornando-a mais efetiva. “Ou seja, acima do cut-off (nível de corte), o condutor está inabilitado para dirigir porque os índices de drogas presentes no seu organismo afetam a sua capacidade de tomar decisões seguras ao volante. O mesmo ocorre em caso de abstinência”, completa.
Exame toxicológico de larga janela de detecção promove combate ao uso de drogas em decorrência do desestímulo ao excesso de jornada e às altas velocidades, com a consequente redução dos acidentes nas vias de circulação rodoviária nacionais
O exame, definitivamente, é uma valiosa ferramenta para tornar ruas e estradas mais seguras. Segundo levantamento feito pelo SOS Estradas – Programa de Segurança nas Estradas, entre março de 2016 e julho de 2021, desapareceram do mercado 3,6 milhões de condutores das categorias C, D e E. Quando historicamente, entre 2011 e 2015, o crescimento médio anual era de 2,8%. Um fato sem precedentes no trânsito brasileiro e indício de que muitos motoristas usuários de drogas evitaram o exame porque o seu resultado daria positivo.
“É a chamada positividade escondida, que foi revelada pela queda no número de habilitados nas categorias C, D e E. Os profissionais de carreiras que exigem atenção, perícia e coordenação motora adequada, como motoristas profissionais, pilotos, militares e policiais sabem que se usarem drogas não vão passar no exame e, assim, não terão condições de seguir na profissão que escolheram. É algo revolucionário e que combate o uso da droga pelo desestímulo”, opina Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas, completando que, por conta do exame, os acidentes com caminhões caíram 34% nas rodovias federais entre 2015 (último ano sem a exigência do exame) e 2017 (o primeiro em que o exame foi exigido na plenitude). No caso dos ônibus, a queda foi de 45%.
Os dados da ABTox revelam, ainda, que a cocaína é a principal droga utilizada pelos motoristas profissionais, superando em várias vezes o rebite (anfetaminas).
Analice Gigliotti afirma que o exame é essencial para tornar o trânsito mais seguro. “Estamos falando de motoristas que transportam milhões de pessoas por dia, colocando em risco todos os envolvidos, inclusive, eles mesmos. Por isso, o exame de larga janela de detecção é essencial nessa prevenção”, diz ela, acrescentando que dentre as principais drogas usadas pelos motoristas, como cocaína, opióides e maconha, as consequências são muito negativas. “A cocaína causa um efeito, na hora do consumo, de agitação psicomotora e pode levar a quadros de psicose. Porém, no dia seguinte, sua abstinência leva à sonolência e falta de atenção, o que é extremamente prejudicial para guiar um veículo. Já os opióides e a maconha causam uma lentificação e diminuição dos reflexos, sensações muito perigosas”, completa.
Já para Marco Cantero, ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Aeroespacial e médico revisor do RBAC 120 (Programa de Álcool e Drogas) da ANAC, o uso de drogas no transporte aéreo também preocupa, mas ações tomadas de maneira preventiva garantiram uma mudança positiva no setor. Para ele, o principal valor de uma companhia aérea é a segurança de suas operações. “Por isso, o uso de drogas por pessoas ligadas à operação aérea interfere no poder de julgamento e tomada de decisão delas. E justamente a aviação mundial tornou-se ainda mais segura no século XXI, sendo que as testagens toxicológicas têm responsabilidade direta nesse sucesso”, afirma ele, acrescentando que as drogas mais usadas pelos colaboradores do ramo são as mesmas da população em geral: cocaína, álcool e maconha.
Portanto, Cantero afirma que o mundo da aviação é bastante engajado em promover campanhas educativas, além de testar as pessoas e tratar os que estão doentes. “Encarar a dependência química como doença e oferecer tratamento faz parte do sucesso desse projeto. Mas não pode haver tolerância, sob risco de comprometer a segurança de voo. Com os mecanismos atuais de diagnóstico, a proposta é que usuários de drogas não entrem no sistema da aviação”, observa.
E, por fim, Analice diz que o uso de drogas é uma doença de saúde ocupacional que afasta os motoristas do seu trabalho, e que acaba afetando não somente o usuário em si, mas pelo menos cinco pessoas do seu convívio próximo. “Então, não teremos uma só pessoa precisando de tratamento, mas todas essas cinco. Isso ocorre seja pela violência que faz parte da rotina dos envolvidos, ou pela preocupação da mulher com o filho que não chega em casa, ou, ainda, pelo pai que chega em casa trôpego e completamente alterado. É um problema social de extrema gravidade e que precisa da atenção da sociedade”, finaliza.
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